Susan Sontag e o movimento das ideias
- Patrícia Claudine Hoffmann
- 23 de mar. de 2024
- 4 min de leitura
"Como escritora, criadora de literatura, sou tanto uma narradora como uma pensadora. As ideias me põem em movimento. Mas romances são feitos não de ideias, e sim de formas. Formas de linguagem. Formas de expressividade. Não tenho uma história na minha cabeça antes de ter uma forma. (Como disse Vladimir Nabokov: “O padrão da coisa precede a coisa”.) E — implícita ou tacitamente — romances são feitos da noção que o escritor tem daquilo que a literatura é ou pode ser. A obra de todo escritor, toda performance literária é uma justificação da literatura em si, ou redunda nisso. A defesa da literatura tornou-se um dos temas principais do escritor. Mas, como observou Oscar Wilde, “uma verdade na arte é aquela cujo oposto é também verdadeiro”. Parafraseando Wilde, eu diria: uma verdade sobre a literatura é aquela cujo oposto também é verdadeiro.
Assim, a literatura — e falo de forma prescritiva, não apenas de forma descritiva — é autoconsciência, dúvida, escrúpulo, rigor. É também — de novo, de forma prescritiva e também descritiva — canto, espontaneidade, celebração, êxtase.
Ideias sobre literatura — à diferença das ideias sobre, digamos, o amor — quase sempre surgem como uma reação às ideias de outras pessoas. São ideias reativas.
Digo isso porque tenho — ou a maioria das pessoas tem — a impressão de que você está dizendo aquilo.
Desse modo quero abrir espaço para uma paixão maior ou para uma prática diferente. Ideias dão permissão — e quero dar permissão a um sentimento e a uma prática diferentes.
Digo isso quando você está dizendo aquilo não só porque os escritores são, às vezes, adversários profissionais. Não só para compensar o inevitável desequilíbrio ou unilateralidade de qualquer prática dotada do caráter de uma instituição — e a literatura é uma instituição —, mas porque a literatura é uma prática enraizada em aspirações intrinsecamente contraditórias.
Minha opinião é que qualquer explicação da literatura é falsa — ou seja, redutora; meramente polêmica. Para falar de forma verdadeira sobre literatura, é preciso falar por meio de paradoxos.
Assim, toda obra de literatura importante, que merece o nome de literatura, encarna um ideal de singularidade, de uma voz singular. Mas a literatura, que é uma acumulação, encarna um ideal de pluralidade, de multiplicidade, de promiscuidade. Toda ideia de literatura que podemos ter — literatura como engajamento social, literatura como busca de intensidades espirituais privadas, literatura nacional, literatura mundial — é, ou pode tornar-se, uma forma de deleite espiritual, vaidade ou autocongratulação.
A literatura é um sistema — um sistema plural — de padrões, ambições, lealdades. Parte da função ética da literatura é a lição do valor da diversidade.
Claro, a literatura deve agir dentro de fronteiras. (Como todas as atividades humanas. A única atividade sem fronteiras é estar morto.) O problema é que as fronteiras que a maioria das pessoas quer traçar sufocariam a liberdade da literatura de ser o que ela pode ser, com toda a sua inventividade e capacidade de se agitar.
[…]
As virtudes que tornam um dado escritor importante ou admirável podem, todas elas, ser localizadas no âmbito da singularidade da voz do escritor.
Mas tal singularidade, cultivada em particular e fruto de um longo aprendizado na reflexão e na solidão, é constantemente testada pelo papel social que os escritores se sentem chamados a desempenhar.
Não questiono o direito de um escritor empenhar-se em debates sobre questões públicas, de assumir causas comuns e exercitar a solidariedade com pessoas que pensem como ele.
Tampouco quero dizer que tais atividades levam o escritor para muito longe do local anterior, solitário, excêntrico, onde se faz a literatura. O mesmo acontece com quase todas as outras atividades que constituem a vida. Mas uma coisa é participar voluntariamente, movido por imperativos de consciência ou de afeição, do debate público e da ação pública. Outra coisa é emitir opiniões — tiradas moralistas — sob encomenda.
Não: Estou farto de tudo. Mas sim: A favor disso, contra aquilo.
Porém o escritor não deve ser uma máquina de opinar. Como disse um poeta negro do meu país, quando criticado por outros afro-americanos por não escrever poemas sobre as crueldades do racismo, “um escritor não é uma dessas maquininhas em que a gente escolhe a música que vai tocar”. A primeira tarefa do escritor é não ter opiniões, mas dizer a verdade… e recusar-se a ser cúmplice de mentiras e de informações falsas. Literatura é o lar da nuance e da oposição às vozes da simplificação. A tarefa do escritor é tornar mais difícil acreditar nos saqueadores da mente. A tarefa do escritor é nos fazer ver o mundo como é, repleto de muitas e diferentes demandas, partes, experiências.
É tarefa do escritor retratar as realidades: as realidades sórdidas, as realidades que causam enlevo. É da essência da sabedoria fornecida pela literatura (a pluralidade da realização literária) ajudar-nos a compreender que, o que quer que esteja acontecendo, sempre se passa algo mais.
Sou assombrada por esse “algo mais”.
Sou assombrada pelo conflito entre os direitos e os valores que prezo. Por exemplo, às vezes dizer a verdade não favorece a justiça. Às vezes, favorecer a justiça pode acarretar a supressão de boa parte da verdade.
Muitos dos mais notáveis escritores do século XX, em sua atividade como vozes públicas, foram cúmplices da supressão da verdade a fim de favorecer aquilo que entendiam ser (e era, em muitos casos) causas justas.
Minha visão pessoal é de que, se eu tiver de escolher entre a verdade e a justiça — claro, não quero escolher —, escolherei a verdade."
*
do livro "Ao mesmo tempo",
Editora Companhia das Letras
Tradução de Rubens Figueiredo
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